INEVITAVELMENTE, uma pessoa acaba por se deixar contagiar pelo ambiente de indolência moral e de insolvência mental que paira sobre as nossas cabeças como um manto espesso que nos tolhe e encolhe e que, aliás, não vem de agora. É que isto, na verdade, já dura há séculos. Vem este pensamento sombrio a propósito do episódio de violência ocorrido entre o seleccionador nacional de futebol e um jornalista na sala VIP do Aeroporto de Lisboa.
Se é que se pode olhar para estas coisas com bom ânimo, procurando descobrir em cada despautério um aspecto positivo — e essa é a nossa arte nacional —, não haja dúvida que o incidente entre o treinador Carlos Queiroz e o jornalista Jorge Baptista trouxe para a ribalta uma nova realidade, ou seja, uma apetecida transparência no que diz respeito aos conflitos do futebol português que, como é público e notório, sofre de pancada na tola como nunca sofreu.
Basta ouvi-los falar para se confirmar o diagnóstico.
De pancada em pancada, a novidade é que a mais recente cena de trolha, de castanha, com bola ou sem bola, e sem bola neste último caso, primou por escolher um cenário diferente.
Da escuridão dos túneis, quais esconderijos, do defendido anonimato dos intervenientes das ocorrências cavernais, da deficiente qualidade das imagens e das tendenciosas interpretações das mesmas, passou-se, num ápice, para uma sala climatizada do Aeroporto de Lisboa, com sofás estofados e generosa iluminação, com um público tão VIP que nem viaja em classe turística e com acepipes servidos de borla por funcionárias impecavelmente fardadas no lugar dos desmazelados e remediados stewards das situações anteriores.
Inesperadamente, e sem merecimento, a vertente trauliteira do futebol português subiu, de rajada, para aí uns bons cinco ou seis degraus da escalada social e apresentou-se, desta vez, com punhos de renda em ambiente chique. Pois já não era sem tempo.
Deus nos guarde e preserve da verborreia dos moralistas de todas as ocasiões que aproveitam o menor tropeção alheio para clamarem por desinfestações e por despedimentos! São os temíveis legionários por conta própria que zelam pelo bom comportamento de terceiros, senhores de uma vocação ditatorial e que gostam de pregar sermões, não pelos sermões em si, muito menos pela causa ética em discussão, mas porque se comprazem em ouvir-se falar, adoram o som da sua própria voz.
À luz da moral vigente, do histórico pugilístico recente e da cultura de impunidade imperante, continua, portanto, Carlos Queiroz muito bem no sítio onde está, ocupando o cargo de seleccionador nacional de todos nós e da equipa de todos nós, por arrasto de funções.
O facto de ter andado ao soco com um jornalista não lhe diminui em nada o currículo, que aliás é escasso, e a ninguém passaria pela cabeça, tendo em conta a situação geral, que o presidente da Federação Portuguesa de Futebol forçasse a sua substituição a quatro meses do Mundial da África do Sul.
Há, no entanto, alguns excessos que merecem ser combatidos. O presidente da FPF é, com todo o respeito, um deles.
Ainda Jorge Baptista não começara a acreditar no que lhe tinha acontecido na sala VIP do Aeroporto de Lisboa e já Gilberto Madail vinha explicar ao País que o desacato era de «carácter pessoal» e que não afectava a imagem da Selecção, muito menos a imagem do seleccionador. É que, conclui-se, sendo o seleccionador, em primeiro lugar, uma «pessoa», tem todo o direito ao desdobre em múltiplas personalidades conforme o lugar e a hora onde se encontra.
Vá lá, vá lá, não nos ter vindo dizer Gilberto Madail que foi assim que Fernando Pessoa, que também era uma «pessoa», fez a sua obra, inventando heterónimos para cada impulso criador, já foi uma sorte para o nosso futebol e para a literatura mundial.
De um modo geral, a opinião pública e a comunicação social aceitaram com grande placidez, a justificação do presidente da FPF, a explicação do seleccionador e a descrição dos factos pelo jornalista. Ninguém se esteve para incomodar minimamente com o assunto que, depois de Sá Pinto ter alegadamente agredido Liedson e de Bruno Alves ter alegadamente agredido não se sabe bem quem, não passa de uma perfeita e alegada banalidade sem consequências.
Perante tudo isto, e considerando que as «pessoas» são todas iguais perante a moral comum e independentemente das explosões circunstanciais das suas múltiplas personalidades criativas, é de recear que uma forte e tremenda injustiça esteja prestes a ser cometida no futebol português.
Bastou ler com mediana atenção os jornais de quarta-feira, para se tornar evidente que João Pereira, o azougado lateral-direito do Sporting, não beneficia do mesmo estatuto de redenção concedido a outros agressores nacionais.
Na verdade, com que direito vêm agora os moralistas do costume exigir que João Pereira não possa ser escolhido por Carlos Queiroz para integrar a comitiva portuguesa que vai disputar o Mundial do próximo Verão?
Quando chegou ao Sporting não disse logo o temperamental jogador que estava ali para «morrer em campo»? E se esse foi, objectivamente, um compromisso «pessoal» de Pereira que logo fazia temer o pior, como considerar a sua agressão, a pés juntos, sobre o trinca-espinhas Ramires, sem bola sem nada, como impeditiva de figurar entre os eleitos do seleccionador? Com que moral o querem agora afastar da Selecção?
Enfim, no futebol também há classes.
E uma sala VIP será sempre uma sala VIP, o resto é conversa.
OSporting de Braga, que encanta ver jogar, distanciou-se uma vez mais do Benfica e mantém a mesma diferença de pontos para o FC Porto. O Benfica, que jogou malzinho em Setúbal e um bocadinho menos mal em Alvalade, continua a ter razões de queixa do árbitro portuense Jorge Sousa.
Com a conclusão do inquérito disciplinar aos acontecimentos do túnel de Braga, ficou provado que Cardozo foi mal expulso no intervalo porque só quis apartar as partes em conflito e não agrediu ninguém. Jogando com 10 e vendo um golo injustamente anulado, o Benfica saiu de Braga há três meses tal como saiu de Setúbal, no sábado passado, em perda. O azar foi o mesmo. O azar do Benfica neste campeonato tem-se chamado Jorge Sousa, um árbitro que dá galo ao Benfica. São coisas que acontecem. Como consequência, para se afastar do Benfica, o Sp. Braga tem tido sorte com o mesmo juiz.
Todos sabemos que o futebol é um jogo e que a sorte e o azar fazem parte de qualquer jogo, mas, para tirar as teimas a esta questão, quem é que não gostaria de ver o mesmo Jorge Sousa a apitar o FC Porto-Sporting de Braga que se avizinha? Para vermos quem tem mais azar.
Aterceira edição da Taça da Liga vai ter uma final em grande: Benfica-FC Porto, a 20 de Março, no Estádio do Algarve. Isto, em princípio. Porque vai haver ruído com a data e com o local da festa. É uma previsão, obviamente.
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