O jogo contra a pobreza moral
NÃO, não é verdade que o Apito Dourado tenha resultado em nada, como vem sendo defendido por muita gente, uns sentindo grande alívio por não haver condenações em tribunal, outros, mais ingenuamente, por se espantarem com esse mesmo facto.
O Apito Dourado resultou num grande desvendar público de uma realidade peculiar e, só isso, é um factor de progresso porque uma sociedade informada reúne meios de análise que a tornam mais apta a pensar e a agir e, por essa mesma razão, está uns bons passos à frente de uma sociedade ignorante que, por deficiência de saber, acalenta no seu seio a perpetuação dos sistemas vigentes, por mais lamentáveis e contrários aos interesses comuns que sejam.
Voltando ao futebol, como experiência sociológica, é curioso observar como muitos a quem a ideia de perpetuação do sistema agrada profundamente, porque se sentem confortáveis todos os dias e campeões todos os anos, fazem questão de afirmar com grande firmeza que nunca tomaram conhecimento das particularidades do processo Apito Dourado, que nunca leram as transcrições das escutas na imprensa e que, mais recentemente, se recusam a ouvir a respectiva banda sonora disponível on-line, facto que consideram um escândalo.
Note-se que não consideram escandaloso o conteúdo das escutas. Consideram escandaloso a sua disponibilização áudio que as torna acessíveis ao país inteiro e até às crianças em idade escolar através dos computadorzinhos Magalhães.
Os argumentos avançados por estes cidadãos que se recusam a tomar conhecimento são sempre de alta índole «moral». Ou é porque é feio escutar conversas alheias, ou é porque, em nome do bom funcionamento da Justiça, as escutas não são «válidas», ou é porque não se deve perseguir ninguém, ou é porque é muito mais cómodo não ter de ter opinião porque nunca se sabe como é que estas coisas vão acabar um dia.
No entanto, no jogo contra esta moral, o mundo avança. É essa a boa notícia.
Não haverá grandes dúvidas de que o Apito Dourado serve como instrumento dissuasor de práticas que terão sido correntes num passado muito recente. É de duvidar que, no presente ou no futuro, algum árbitro se atreva a deslocar--se a casa de um presidente de um clube para pedir conselhos matrimoniais para o seu próprio pai, ou que algum árbitro receba benefícios em forma de «fruta de dormir» ou de «café com leite», ou que algum presidente dos árbitros conferencie com presidentes de clubes sobre as promoções e as despromoções dos seus rapazes.
O mundo avança devagarinho, mas avança. E avança sempre com novos protagonistas. E com novidades que substituam as antiguidades.
Mas há esperança.
É de duvidar, por exemplo, que sem a existência do processo Apito Dourado, os três jogadores do Leixões que foram contactados por um empresário com intuitos ilícitos nas vésperas do jogo com o Benfica, tivessem alguma vez a coragem de denunciar o facto ao seu treinador.
Não porque esses três jogadores do Leixões se prestassem alegremente e sem rebates de consciência à tramóia, mas porque, antes de haver um Apito Dourado e a respectiva exposição pública das práticas investigadas, e a vergonha resultante, é bem provável que os ditos jogadores pensassem que mais lhes valia estar calados, sossegadinhos, não fossem arranjar sarilhos para si próprios e não fossem pôr em risco as suas carreiras profissionais, sabendo eles muito bem que «as coisas são como são» e não vale a pena lutar.
Só que as coisas já não são como eram, depois do Apito Dourado.
E, por isso, os três jogadores do Leixões optaram pela decência e informaram o seu treinador que optou pela coragem e informou o seu presidente que optou pelo bom senso e informou o presidente do clube que, segundo o empresário, fez a oferta. E, por fim, o presidente do Sporting de Braga, em nome de quem o dito empresário terá oferecido 50 mil euros aos jogadores do Leixões para ganharem ao Benfica, optou pela única solução que lhe restava. E fez uma queixa-crime no Ministério Público contra o empresário que «usou o nome desta Instituição numa suposta tentativa de aliciamento», conforme se pode ler no comunicado emitido pelo Sporting de Braga.
Não digam que o Apito Dourado foi um tiro de pólvora seca.
Foi antes o início do grande jogo contra a pobreza moral.
Finalmente, a propósito do Jogo Contra a Pobreza que aconteceu, sob o alto patrocínio da Organização das Nações Unidas, na última segunda-feira, no Estádio da Luz… como se sabe, a ONU é uma organização centralista pejada de benfiquistas fanáticos dos cinco continentes, é uma espécie de braço internacional do Ministério Público português e da Polícia Judiciária portuguesa, e de todas essas organizações fundamentalistas, que perseguem por pura inveja os «engenheiros-chefes», os «chefes da caixa» e os «absolutamente geniais» do nosso querido futebol.
Só assim se explica que tenha sido o Benfica o clube escolhido e convidado para organizar o espectáculo, naquilo que foi uma acintosa demonstração do seu alto crédito enquanto instituição de dimensão mundial e centralista, ora aí está.
Como se não bastasse a provocação, o jogo até teve árbitros!
Teve um árbitro estrangeiro, o praticamente desconhecido italiano Pierluigi Collina, e alguns árbitros portugueses, que se foram revezando na função de dirigir a partida de beneficência. Os árbitros portugueses conseguiram chegar ao Estádio da Luz ao seguirem, diligentemente, as instruções de trânsito que lhes foram sussurradas pelo GPS da Benfica TV que é precisamente o mesmo GPS do secretário-geral da ONU, o senhor Ban Ki-moon que é de nacionalidade sul-coreana.
Enfim, ONU, Benfica e um… sul-coreano, como não podia deixar de ser. Para a tramóia ficar completa só podia mesmo ser um tipo do «sul» porque a guerra, como salta aos olhos, é contra os grandes timoneiros do alegado «norte».
Portanto, estão tramados, e muito bem tramados, os árbitros portugueses que se atreveram a aceitar o convite da centralista ONU, através do nome de código Águia Vitória, para se apresentarem no Estádio da Luz para um jogo em que «o resultado não tinha importância nenhuma», curiosa expressão que já ouvimos em qualquer lado. Estão tramados os árbitros portugueses porque o impoluto anticentralismo jamais lhes perdoará o pecaminoso convívio da noite de segunda-feira. E hão-de ver como isto é verdade.
Prepare-se, também, o senhor Vítor Pereira, presidente da organização dos árbitros portugueses, para passar um mau bocado. Não sabe ele que «manda quem pode e obedece quem tem juízo», esse grande ditame que fez jurisprudência nas duas últimas décadas e meia dentro e fora das quatro linhas? Então, que raio foi ele também fazer ao Estádio da Luz? Ainda por cima viu o jogo sentado, bem sentado numa cadeira estofada, e não «de cócoras» como lhe «fica bem», apesar de tudo.
São coisas bastante difíceis de explicar aos leigos na matéria.
Mas, falando agora daqueles que são os verdadeiros absolutamente geniais do futebol, os jogadores, houve uma explicação que ficou muito bem dada na noite de segunda-feira no relvado da Luz. Trata-se de Fernando Chalana.
Durante anos, tive grande dificuldade em explicar a benfiquistas mais jovens, que nunca o viram jogar, como Chalana foi único e absolutamente genial. Compreenda-se que se o seu poder de drible era indescritível, e era, torna-se obviamente impossível de descrever. Daí que alguns benfiquistas mais novos, que conheço desde o berço, achassem que tudo não passava de um grande exagero meu.
Agradeço, portanto, a Luís Figo a grande ajuda prestada nesta causa. Quando Fernando Chalana entrou em campo no Jogo Contra a Pobreza, Luís Figo recebeu o «pequeno genial» — expressão inventada pelo jornalista Neves de Sousa — com um sorriso largo e erguendo as mãos ao céu, saudou-o numa série de vénias de veneração e de inspiração muçulmana. «Chalana foi o meu ídolo», disse Figo, que já foi o melhor do mundo, no final do jogo.
«Cambada de mouros», terão dito os apaniguados do anticentralismo.
«Estão a ver? Estão a ver?», disse eu a alguns benfiquistas mais jovens.
Foi uma grande explicação.
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