domingo, maio 23, 2010

O reencontro com a história - Luís Freitas Lobo

Benfica Campeão. Vitória resgatou o código genético do bom futebol (místico e goleador) do velho Benfica.

Mais difícil do que escrever a história é, a certo ponto do trajecto, ter de a reescrever. Para um clube de futebol, isso também é verdade. Ao longo dos tempos, o Benfica construiu a sua história num caminho de vitórias. Até que, a certo ponto do percurso, a 'odisseia encarnada' chocou com o tempo. A Norte, o futebol conhecera novas expressões de poder, discurso e método, o país mudava e novos adamastores nasciam. O mundo benfiquista teve dificuldade em entender essas mudanças. Órfão das referências do passado que o fizeram grande, enfrentou a travessia do deserto sem uma bússola futebolística que o orientasse na (re)descoberta do seu caminho. A cada passo que dava, as páginas da última noite mágica, em 94, tornavam-se cada vez mais amareladas. 16 anos. Pelo meio, um italiano 'com um frasco de veneno à cintura' ainda acendeu, por instantes, a chama do título, mas durou pouco. Cada jogo do título de 2005 mais parecia um jogo da luta pela descida. Nessa vitória não estava o verdadeiro ADN encarnado.

Ele é feito de um jogo com a baliza nos olhos, o ataque como forma de vida. A cada arranque de um extremo, o estilo de Di Maria que parece ir levantar voo, o adepto levanta-se da cadeira. A cada corte de um defesa-central, a força de Luisão ou a alma de David Luiz, o estádio ergue-se porque sabe que, a seguir, surgirá o ataque. Nesse sentido, 2010 recolocou o futebol encarnado no trilho certo da sua história. Reescreveu-a após longos anos de identidade perdida. Jesus entendeu esse momento da história benfiquista como só um treinador português, pela vivência da nossa realidade e causas da sua mutação, poderia conhecer. Desde o primeiro dia, tocou nos pontos certos do balneário e relvado. Essa capacidade de saber como reescrever a história nasce muito antes do célebre 'mestre da táctica'. No fundo, deu-lhe as bases emocionais (mística) para a construção mais científica (modelo de jogo). Do grito para o relvado, mascando pastilha elástica, ao 4x1x3x2 e o posicionamento cirúrgico nas bolas paradas.

Os 'velhos' jogadores renasceram e os 'novos' acenderam mais luzes em campo. Primeiro a ideia de jogo. Depois, os jogadores para ela. Assim chegaram Javi Garcia, a 'âncora' do meio-campo, aquele '1' solitário que surge na fórmula táctica, Ramires, o 'corre-caminhos" do meio-campo, e Saviola, um 'coelho' em forma de avançado que, metaforicamente, também parece arrastar quem o persegue (os defesas adversários) para um poço no qual depois surge Cardozo para acabar a jogada com um golo. Ao lado deles, Di Maria ganhou asas, David Luiz voltou à sua 'casa táctica' natural no centro da defesa e até Aimar recuperou a respiração táctica e física.

Neste ponto da história tudo parece pacífico. O mais impressionante, porém, em toda esta reinvenção, é o papel do treinador. Em geral, num grande clube, sucede o contrário. Ou seja, é o clube que, reconhecendo-lhe valor ao contratá-lo, dá-lhe asas (a grande oportunidade) para a sua carreira. Aqui, sucedeu quase o inverso. Foi o treinador que levantou o clube. Isto é, tornou-se maior do que a 'estrutura' até se confundir com ela e hoje ser quase impossível imaginar o clube (e a equipa) sem o seu carisma táctico e humano. Este Benfica resgatou o seu código genético mesclando-o com as estratégias de poder que, dentro e fora do relvado, os tempos modernos ergueram. Tudo isto demora tempo a solidificar. Nesse sentido, este título é apenas a primeira página de um novo capítulo que, nas próximas épocas, ainda terá muito para escrever. Até ser história.


Números do título

Há 19 anos que o Benfica não fazia tantos golos numa época. 78 bolas no fundo da baliza. Só recuando até 90/91, quando fez 89, mas eram mais jogos.

Cardozo foi o melhor marcador, fiel ao destino (e obrigação) de um ponta-de-lança dentro de uma equipa. Teve a seu lado um 'coelho' veloz que o entendeu na perfeição, Saviola, que lhe deu muitas bolas ao jeito do seu explosivo pé esquerdo.

Mas, apesar dos golos, Cardozo ainda não é o ponta-de-lança goleador que une todo o 'mundo benfiquista'. Continuam a dizer que é lento e falha mais golos do que marca. E, claro, há ainda os penaltis falhados nos momentos decisivos. Não é, de facto, um jogador esteticamente elegante. Alto e esguio, parece um alicate gigante quando recebe a bola e, de braços arqueados, tenta dominá-la. Mas, nessa altura, embora não ganhe um lance em velocidade, cobre muito bem o espaço, levanta a cabeça e faz um excelente passe. Ou seja, tem técnica e visão de jogo. Apenas não fabrica espaços. Precisa que outro jogador (e a equipa) os fabrique para ele. Por isso, a importância complementar de Saviola. Depois disso, espaço aberto e a bola a cair no seu pé esquerdo, o momento seguinte é, quase sempre, um remate explosivo para a baliza.



O onze-base e os seus símbolos

Javi Garcia
Não aparece nos resumos mas é fundamental para equilibrar tacticamente a fórmula 4x1x3x2 de Jesus. Nessa equação táctica, ele é 'âncora' do sistema. Joga simples, dá curto, segura a bola e a posição. Está sempre no caminho para o corte e no sítio certo para fazer o primeiro passe no início da transição defesa-ataque. Um futebol 'confidencial', fisicamente forte, que nunca deixa a equipa tirar os pés da relva.

Saviola
Um jogador tacticamente fundamental no processo ofensivo. Quando recua, conecta com Aimar e liga-se ao meio-campo. Quando avança, conecta com Cardozo, e liga-se ao ataque. O melhor Benfica desta época foi aquele que jogou durante o melhor período (físico e táctico) de Saviola. Confundiu adversários quando se escondia na chamada zona entrelinhas à entrada da área. Claramente, este campeonato teve um 'coelho' a mais. E isso fez toda a diferença...

Luisão
Gigante, a sua presença no centro da defesa intimida e assusta a bola e os avançados que lhe aparecem. Nunca treme. Não quer é ver a bola por perto. Longe de ser um poço de técnica, entra forte em cada lance dividido. Dá no 'osso' e na bola, grita com todos, colegas e adversários. Quando sobe nas alturas é um jogador em forma de 'arranha-céus'. Corta bolas e faz golos. Um verdadeiro líder.

David Luiz
Um 'guerreiro' que disputa com alma e qualidade técnica cada lance em que entra. Depois, com a bola, arranca com ela. No fundo, ele não se satisfaz em ser apenas defesa-central. Quer ser mais coisas no jogo. Quer conduzir como um médio e atacar como um avançado. Pela relva ou pelo ar, impõe o seu futebol de carácter. Tem tudo para se tornar num dos melhores defesas-centrais do futebol mundial.

Luís Freitas Lobo - O reencontro com a história
Di Maria
Mais do que correr, parece que voa pelo flanco esquerdo. Passada larga, finta curta que, de repente, vira larga e estica o jogo, dando-lhe profundidade. Finta e dribla. Inventa no um-para-um e ganha espaços decisivos perto da área. Depois, é mortífero no passe. Truculento, provoca o adversário para, depois, logo a seguir, passar por ele com um sorriso quase trocista. De repente, parece que voltou ao futebol de rua. O espírito é mesmo esse. Mas num grande estádio.
E o futuro, como será?

Saindo Di Maria e David Luiz, isso obriga a ir ao mercado com grande precisão. Mas o onze tem outros pontos para crescer, sobretudo na dimensão internacional. Coentrão foi a revelação a lateral-esquerdo, mas defensivamente não tem a mesma consistência e, por isso, em Liverpool, Jesus puxou David Luiz para esse lugar. No ataque, falta outro jogador capaz de reproduzir os movimentos de Saviola quando recua. Pode ser Gaitan. A maior sensibilidade física de Aimar exige mais um médio ofensivo organizador.

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